Sobre Setembro
Shoulda, Woulda, Coulda
Acordo doente. Tenho o nariz entupido, os olhos cheios de lágrimas. Sinto calor e frio ao mesmo tempo e arrasto-me da cama como uma lesma viscosa e peçonhenta. Tenho uma missão em mente que me leva até à cozinha: café com leite e torradas com ovos mexidos. Não há leite nem pão. Amuo. Vou até ao sofá e enrolo-me numa manta. Abro uma aplicação de entregas e torno a fechar. Abro a aplicação do homebanking. Ver o meu saldo bancário ajuda-me a refrear a minha impulsividade. Penso que talvez me faça melhor à carteira e à dieta comer apenas ovos mexidos e café em vez de mandar vir panquecas e croissants. Torno a levantar-me e dirijo-me à cozinha. Mexo ovos e carrego duas vezes no botão da máquina para o café sair comprido e aguado. Volto para o sofá.
Devia escrever, devia preparar uma apresentação para quarta, devia limpar a casa, sair e ir às compras, devia ir ao hot yoga suar a doença e contaminar quem me rodeia sem peso na consciência. Devia.
Faço scroll no meu iPhone. Vejo crianças famintas e cidades destruídas alternadas com Portuguese girlies a fazerem ASMR com malas da Fendi e chapéus Moschino.
Podia ler ou sentar-me apenas muito quietinha em frente à televisão e começar a minha maratona da gripe. Estudo a sequência perfeita: The Prestige, Oppenheimer, Inception e Interstellar. O Nolan é mestre em cura de gripes, azias e constipações, mas acima de tudo de dias de neura. Com pausas estratégicas teria entretenimento até ao fim do dia.
Devia esperar que o café escorrido e o cocktail de drogas fizessem efeito antes de acender a televisão. Podia voltar para a cama, afinal de contas, trago a cabeça a latejar.
Em vez disso, abro o atlas que tenho na mesa de centro, perto de uma baleia esculpida em madeira e de um grupo de velas de uma marca japonesa que cheiram a pinho dos Himalaias. Abro numa página ao calhas. Leio Beit Hanoun.
Decido delinear o percurso que me separa de Beit Hanoun: são 5921 km por terra. Se partisse agora e não parasse de andar até lá chegar, demoraria 1326 horas; 221 dias de viagem se caminhasse durante 6 horas por dia. Sete meses e meio de caminhada: menos tempo do que a duração de uma gravidez.
Se me pusesse a caminho, atravessaria Portugal numa diagonal que passaria rente ao Fundão e entraria em Espanha por La Alberguería de Argañán, perto de Ciudad Rodrigo, antes de chegar a Salamanca. Entraria em França pelo País Basco e continuaria a caminhada por Toulouse, Montpellier, até chegar à Itália. Nunca fui a Turim, mas conheço Milão relativamente bem. Passaria por Verona e Vicenza e depois, na Eslovénia, por Liubliana. Apesar das aclamadas praias da zona costeira croata, atravessaria o país pelo interior, fazendo uma tangente à fronteira da Bósnia-Herzegovina. Mudaria de alfabeto ao atravessar a Sérvia e, nos mapas, reconheço a fronteira pontilhada com o Kosovo.
Depois da Sérvia, atravessaria a Bulgária e depois a Turquia. Visitaria Istambul e, algures na ponte do Bósforo, sairia da Europa. Até Jerusalém teria de atravessar ainda a Síria, o Líbano e, finalmente, entrar em Israel. Daí até Beit Hanoun seria um pulinho.
Faço o exercício para o lado oposto: cerca de 5921 km separam-me de Washington DC, em linha reta. Mesmo que quisesse muito partir agora a pé, nunca lá chegaria. Não por causa da gripe, mas porque ainda não caminho sobre oceanos.
Acendo a televisão. Preciso de um sedativo forte, de uma droga pesada, de um comprimido em forma de Nolan que me arranhe a garganta ao tomar.
Preciso de enterrar a cabeça na areia só mais um bocadinho.
©Maurizio Cattelan All, 20071
Queria romantizar setembro: colocar uma montagem com a Meryl Streep no The Days a comprar flores, um conjunto de cadernos por estrear, a manta e o chá a saírem de mãos dadas do armário. Mas setembro teve muito de “devia, podia, queria tanto, mas não deu” que romantizá-lo sair-me-ia pela culatra.
Por sorte, ontem chegou outubro, o mês das bruxas, e pode ser que por isso me sinta mais como peixe dentro de água.
Por agora, algumas sugestões de coisas que li, vi e gostei:
O Último Avô, o último livro do Afonso Reis Cabral, teve entrada directa para o pódio das coisas fixes que li ultimamente. Conheço poucos autores que não escrevam sempre a mesma história; o Afonso é um deles.
A História de Roma da Joana Bértholo, que na verdade já li no verão, mas de que gostei muito, muito e por isso acho que devo recomendar.
Assembly de Natasha Brown é um livro que apresenta uma estrutura muito diferente de tudo o que já li e acredito que o vou reler várias vezes ao longo da vida. Achei este livro absolutamente brutal e cruel e verdadeiro e quando o terminei precisei de uns bons minutos para me recompor e parar de chorar.
Slow Horses e Only Murders in the Building têm sido as minhas séries de conforto.
Quero também muito começar a ver Task e quero ir até ao cinema ver o One Battle After Another apesar de ter uma raivinha de estimação ao Paul Thomas Anderson e achar que todos os filmes que faz são absolutamente enfadonhos com uma patine de snobismo que me irrita de morte. Porém, quem sou face a um dos melhores realizadores da actualidade? E como tal, a ver se me encho de paciência para ir ver este novo filme.
Obrigada por terem lido a siete.
Até já e bom almoço,
Rita
Grupo de nove esculturas em mármore de Carrara / Exposição “Italics” de 2008 no Palazzo Grassi em Veneza / Fotografia: Santi-Caleca. Não vi esta peça em Veneza mas vi em 2016 no Monnaie de Paris. O artista pode até ser agora conhecido por causa de uma banana colada com fita-cola na parede, mas essa exposição de há quase dez anos continua a ser uma das melhores que já vi e esta peça em particular uma das mais emocionantes.




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Gosto de te ler. Bjs