Daily Blog #02
Agosto
Tenho facilidade em dormir. Fui abençoada por um Deus em quem não acredito e, além de todas as coisas boas da vida, ainda me deu a sorte de dormir com gosto. Porém, acordo cansada. Os olhos estão colados, reviram-se e teimam em não se manter abertos. Desligo o despertador e saio do quarto sem fazer barulho. Quero vestir-me, mas o corpo insiste em ficar quieto, de pé e de olhos fechados.
Quem me visse de fora diria que sou uma mulher-estátua, como as mulheres-estátuas da Rua Augusta. Com maquilhagem verde a cair em grossas gotas sobre a calçada pombalina.
Quem me visse por dentro saberia que, mal acordei, já estou numa luta greco-romana em pegas eróticas num eu contra mim.
Quero ser como as outras mulheres que vejo. Duras, sábias, auto-cuidadas. Que calçam os ténis, enchem os pulmões de ar e saem para correr ao sabor dos primeiros raios de sol.
Mind over body, they say.
A minha mente e o meu corpo não se deparam: é sempre mente contra mente.
Sair para correr ou não me mexer e fazer figas para que ninguém dê pela minha falta?
Calço as meias, empurro a barriga para dentro de um soutien elástico que me chega ao umbigo e vejo-me ao espelho antes de abrir a porta de casa: um metro e setenta e cinco e quase noventa quilos de alguém que não posso ser eu.
Caminho, ou pairo, ou ando pelo alcatrão e sinto a manhã do fim de Agosto nas costas.
Quando volto a mim, já estou a pedalar no escuro ao som de uma música que não conheço.
No banho, oiço as conversas das minhas vizinhas de balneário. Elas que são lindas, enxutas e bronzeadas. Falam do fim de semana na casa dos tios em Ribamar. Ou dos filhos que estão impossíveis e não vêem a hora de voltarem ao colégio. Ou da Marta que está com um glow incrível desde que engravidou.
Comparo-me.
Não sou a Marta, não tenho filhos e os meus tios moram no Porto, terra onde nunca faz sol e onde o bronze é uma mentira.
Apanho o elétrico e abro o livro que trago na mala. São Os Serões da Província, do Júlio Dinis. No embalo do elétrico, com o livro da minha bisavó no colo, entre o Rato e o Príncipe Real, é muito difícil saber em que ano estou. A cidade que se monta na Rua da Escola Politécnica é a cidade velha, feita de edifícios frágeis e de pontuais vistas para o Tejo. Durante aqueles minutos a balançar na carruagem posso estar em 2025 ou em 1925.
Praise A Lord Who Chews But Which Does Not Consume, do Yves Tumor, é batizado como o mood sonoro do dia. Vivo num universo em que a música me serve de estabilizador de humores. Dias em que é um relaxante muscular, noutros um desinibidor, noutros um sedativo comportamental. Nunca sei ao certo e nos meus auscultadores tanto pode passar Ivandro como Vivaldi.
Agradeço a resposta ao e-mail anterior e peço-lhes que enviem o comprovativo de submissão do requerimento de junção de elementos ao processo de licenciamento nº 33/2025-227, com urgência. And I hope they are doing well. And ask them to please see attached to find the tender package issued to the chosen GC. E depois estou sempre looking forward to hearing from them. E desejo-lhes que tenham a really great day.
Passo pelo armário de amostras do atelier, toco nos azulejos, nos tecidos, nas madeiras, nos metais. Abro e fecho a mesma torneira dez vezes. Acendo o incenso e passeio-o em volta das secretárias. Quero enxotar o mau-olhado, o tédio e o cheiro de comida aquecida no micro-ondas do dia anterior.
Conto os minutos para a hora de almoço.
Lembro-me do toque da campainha que dava direito a livre-trânsito rumo ao recreio da escola e do relógio que parecia parar sempre a dez minutos da liberdade. Relembro os corredores da Eugénio dos Santos, os quadrados brancos e vermelhos no chão e a escuridão de um corredor composto por portas de sala de aula. Lembro-me das oficinas de artes. Se existisse um mapa que traçasse em linhas gerais a organização das escolas em que andei, no centro estaria o pátio e o campo da bola; em seu redor, as salas de aula, os bares e as cantinas; e nos subúrbios (naqueles a que para lá chegar é preciso apanhar um metro e um comboio) ficavam as oficinas de artes.
Lá nunca contei os minutos.
Lembro-me do Camões. E de pedirmos pizza para jantar enquanto pintávamos telas, ou murais, ou cenários, até ser hora de apanhar o último metro para casa.
Não deixo de contar os minutos para a hora de almoço.
Subo de novo até ao jardim e caminho a passo rápido para a livraria mais próxima. Tenho uma lista de livros guardados nas notas do telefone:
Giovanni’s room: James Baldwin
The Wedding People: Allison Espinach
Slow Days, Fast Company: Eve babitz
Sinais de Fogo: Jorge de Sena
Os Passos em Volta: Herberto Helder
Húmus: Raul Brandão
Dos muitos sonhos que tenho, o maior é o de um dia o meu nome constar numa destas listas. Das que se apontam nas notas do telefone, num post-it colado na agenda, na parte de trás de um recibo, num bocado de toalha de papel manchada com vinho tinto porque alguém disse: Tens mesmo de ler.
Na reunião da tarde, observo o casal que se senta à minha frente. Trazem o bebé. É o sexto filho. Ela não tem 30 anos e é jogadora de póquer profissional. Está orgulhosa porque já voltou a treinar e exibe o bícep. Ele está profundamente indeciso entre gastar trinta mil euros numa cama ou quarenta mil. Suponho que para se fazerem tantos bebés seja imperativo que a cama custe pelo menos o que eu ganho num ano de trabalho.
Sorrio.
Quem me vir agora poder-me-á confundir com um palhaço dos que atuam na Rua Augusta. Também eles sorriem enquanto fazem malabarismo com fogo e pedalam um monociclo. E também eles, se os olharem nos olhos, tentam esconder um abismo de desespero indisfarçável.
As minhas amigas decidem que temos de jantar cedo porque há comboios para apanhar para a outra margem, chaves para ir buscar porque se está a viver entre casas, maridos febris e acima de tudo porque é quarta-feira.
Ainda não bateram as sete e já estou sentada na esplanada, de Aperol e cigarro na mão. Para isto tenho jeito e para isto tenho tempo.
Jantamos quinzenalmente e tal como os ponteiros do relógio, falamos à vez. Com quem andamos, com quem nos vamos casar, se nos vamos despedir ou se fomos promovidas. Que viagem marcámos ou se vamos mudar de casa.
No momento do prato principal, respiramos fundo e queremos saber em quem vamos votar nas próximas eleições, se ainda estamos de luto ou se suspeitamos estar doentes. As sobremesas chegam e falamos dos livros que lemos e dos filmes que vimos.
Abraço-as e peço que, por favor, avisem quando chegarem a casa.
Chego a casa.
Cheira a refogado e oiço vozes que chegam da televisão.
Contamos o dia um ao outro enquanto fumo um cigarro empoleirada na janela da sala de estar.
Fecho-me no escritório e sento-me ao computador. Sei que os minutos que me restam para escrever passarão sem que me aperceba de que passaram.
Antes de me arrastar para a cama, concluo que, se pudesse escolher um super-poder, gostava de conseguir controlar a velocidade do tempo. Um minuto aqui sentada poderia demorar uma hora enquanto os dez minutos antes da hora de almoço passariam um nanossegundo.
Até já,
Rita
Obrigada por leres a siete.
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